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Um casal divino

Fluminenses de origem, Zélia e Jerônimo seguem os passos de Odetinha e podem virar santos

Por Felipe Carneiro
Atualizado em 2 jun 2017, 13h13 - Publicado em 5 fev 2014, 16h07

Convidada pelo pároco de Petrópolis para ser a madre superiora de um convento, em 1872, a jovem Zélia foi levada por seu pai, o conselheiro do Império João Pedreira do Couto Ferraz, à cidade mineira de Baependi para se consultar com Nhá Chica, beata que ganhara fama graças ao poder de suas orações e às predições certeiras. Apesar de católico fervoroso, Ferraz não queria que a filha, então com 14 anos, ingressasse tão cedo numa ordem religiosa, e a palavra de Nhá Chica seria o fiel da balança na decisão. Após orar para Nossa Senhora da Conceição, ela aconselhou Zélia a recusar o convite, pois percorreria outro caminho como mensageira do Senhor. De acordo com a profecia, ela se casaria com um homem de Deus, seria mãe de uma grande prole e, no fim da vida, aí sim se tornaria uma religiosa em tempo integral. Pois no dia 27 de julho de 1876 Zélia se uniu ao engenheiro e cafeicultor Jerônimo de Castro Abreu Magalhães numa cerimônia realizada na Chácara da Cachoeira, na Tijuca. Quando enviuvou, depois de dar à luz treze filhos, ela viu a previsão se concretizar ao ingressar no Convento de Servas do Santíssimo Sacramento, no Largo do Machado. A única coisa que Nhá Chica não antecipou foi que, mais de 100 anos depois, a Arquidiocese do Rio abriria um processo para a canonização de Zélia e Jerônimo. “O casal é alvo de uma antiga devoção no estado. O que nós estamos fazendo é trazer isso à tona”, diz o cardeal Orani Tempesta, arcebispo do Rio.

Zélia (1857-1919), nascida em Niterói, e Jerônimo (1851-1909), de Magé, não só foram fiéis exemplares como transmitiram sua crença aos herdeiros. Todos os nove filhos que chegaram à vida adulta tornaram-se sacerdotes ou noviças ? os demais morreram na infância. “Eles se recusaram a entregar os filhos a tutores, como era comum, e se encarregaram da educação das crianças”, conta Allan Amaral, pesquisador da arquidiocese. “Os dois tinham ideias muito humanitárias em um período em que esse discurso era encarado como fraqueza.” A despeito de ser dono de escravos, algo inegavelmente desabonador, o casal mantinha uma relação diferente da habitual com os serviçais. Na fazenda da família, na cidade do Carmo, no interior fluminense, não existia senzala. Todos os escravos recebiam salário e cada um possuía a própria casa. Não havia a figura do capataz nem a do chamado “touro?, negro de compleição física privilegiada escolhido para procriar com as servas. Eles eram ainda batizados e se casavam, o que lhes dava proteção legal para não ter os filhos comercializados. Quando a princesa Isabel, que era sua confidente, assinou a Lei Áurea, Zélia vendeu parte das propriedades e doou o dinheiro a instituições de ajuda aos recém-libertos. Continuou a fazê-lo até morrer, pobre, tendo doado toda a fortuna da família aos alforriados e à Igreja.

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Não é comum a beatificação de um casal, o que até hoje só aconteceu em duas ocasiões. A primeira delas foi com os italianos Luigi e Maria Quattrocchi, que viveram entre os séculos XIX e XX e foram beatificados pelo papa João Paulo II, em 2001. A outra envolveu os pais de Santa Teresinha, os franceses Luís Martin (1823-1894) e Zélia Guérin (1831-1877), seis anos atrás. O caso fluminense chama mais atenção porque houve um processo, malsucedido, de tentativa de canonização de Zélia na década de 30 em que o marido não aparecia. Desta feita, a inclusão de Jerônimo se deu porque a arquidiocese chegou à conclusão de que, dadas as circunstâncias da sociedade patriarcal oitocentista, as ações não poderiam ter sido feitas sem a intensa participação do cônjuge. Primeira etapa do processo, as investigações sobre o casal começaram no fim de 2011. Um ano antes, no entanto, uma sobrinha-neta dos dois, Cecília Duprat, havia iniciado um levantamento da documentação dos ancestrais. Só no Arquivo Nacional encontrou mais de 3?500 cartas, certidões e artigos de jornal. No ano passado, o Vaticano concedeu à causa o nihil obstat (nenhuma objeção, em latim), tornando a candidatura oficial perante a Santa Sé. Finalmente, no dia 20 de janeiro foi nomeada a comissão histórica para a causa, e os restos mortais dos dois foram levados a um memorial na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Gávea. Concluída a pesquisa, a papelada seguirá para o Palácio Apostólico, onde será analisada por uma comissão de historiadores e outra de teólogos, responsáveis pelo veredicto.

Desde 1983, quando o Vaticano facultou às arquidioceses a prerrogativa de iniciar os processos de canonização, os pedidos aumentaram exponencialmente, com mais de 370 pleitos em andamento. O processo de beatificação de Zélia e Jerônimo ocorre um ano depois de a carioca Odette Vidal de Oliveira, a Odetinha, ter sido consagrada Serva de Deus, a primeira designação dada aos candidatos à santificação. Não se trata de coincidência. Há um movimento na arquidiocese, encabeçado por dom Orani, para potencializar casos do gênero. Foi criado até mesmo um departamento específico para a tarefa, o Escritório da Comissão para as Causas dos Santos. Ele reúne cinco pessoas dedicadas a levantar documentos, entrevistar testemunhas e lidar com a burocracia. Além do casal e de Odetinha, há um terceiro personagem do Rio cuja argumentação está pronta para ser enviada ao Vaticano. Trata-se de Guido Schäffer, seminarista que morreu há quase cinco anos, vítima de afogamento, quando surfava na Praia do Recreio. “O papa João Paulo II sempre repetia que precisávamos de santos de calças jeans, para mostrar que os exemplos de fé não estão apenas no passado”, diz o delegado arquiepiscopal dom Roberto Lopes. Quem disse que santo de casa não faz milagre?

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