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A vida abaixo dos bueiros

As explosões em instalações subterrâneas da Light em Copacabana chamam atenção para um mundo de estruturas, túneis, dutos, cabos e relíquias arqueológicas que a metrópole esconde.

Por Rafael Sento Sé
Atualizado em 5 jun 2017, 14h59 - Publicado em 19 Maio 2011, 17h34

As explosões em instalações subterrâneas da Light em Copacabana chamam atenção para um mundo de estruturas, túneis, dutos, cabos e relíquias arqueológicas que a metrópole esconde

De madrugada, assim que o trânsito diminui, uma equipe de 300 homens, entre eletricistas, técnicos e engenheiros, deixa as unidades de manutenção da Light para inspecionar todas as estruturas de distribuição de energia da empresa. Ao contrário de seus colegas que trabalham durante o dia, eles não se dependuram em postes, mas se enfiam em buracos abertos no asfalto. O objetivo é verificar a situação da rede subterrânea da companhia. Boa parte do trabalho acontece nas chamadas câmaras transformadoras, salas de concreto com cerca de 10 metros quadrados, localizadas a 2 metros de profundidade. Desde que uma delas explodiu, no início de abril, em Copacabana, deixando cinco feridos e um rombo no chão, a vistoria tornou-se prioridade máxima. Até o fim do ano, equipamentos antiquados serão trocados e um sistema de monitoramento eletrônico vai equipar um terço das quase 4 000 unidades existentes. Em dois anos, todas as demais câmaras serão modernizadas. Paralelamente, a Light e outras concessionárias, a exemplo de CEG, Cedae, RioLuz e Oi, comprometeram-se a fornecer à prefeitura um criterioso levantamento sobre tudo o que está enterrado no subsolo. “Precisamos saber exatamente o que existe, seja para monitorar riscos, seja para racionalizar obras e intervenções, com o mínimo de impacto”, diz Carlos Roberto Osório, secretário municipal de Conservação dos Serviços Públicos.

Pouca gente sabe, mas nossas profundezas são um caso atípico entre as metrópoles brasileiras. Por seu passado como capital, o Rio de Janeiro sempre foi um laboratório de experimentações urbanas sofisticadas, que se valeram do subterrâneo para embutir uma vasta infraestrutura de serviços. Desde meados do século XVIII, um sistema de túneis sob Santa Teresa ligava a nascente do Rio Carioca ao chafariz instalado no largo de mesmo nome. Em 1831, foi inaugurado o primeiro ponto de iluminação a gás no Centro por uma empresa fundada pelo barão de Mauá, que usava tecnologia importada da Europa. Vinte e cinco anos depois, já tínhamos uma rede de quase 2 000 lampiões abastecidos com o combustível, transportado através de 20 quilômetros de tubos de ferro, todos instalados a 1,5 metro abaixo do solo. O imperador dom Pedro II ainda tinha a barba escura quando foi criada aqui a primeira rede de esgoto do país, nos bairros do Flamengo, Catete e Glória. Implantada pela companhia inglesa City Improvements, em 1862, era a terceira do tipo no planeta. “Como uma espécie de vitrine do Brasil, o Rio sempre foi pioneiro nesse tipo de experiência”, diz o pesquisador André Decourt.

Daniel Rossini e Paula Fabris
Daniel Rossini e Paula Fabris ()

Reformas urbanas que mudaram o perfil da cidade também ajudaram na adoção de tecnologias inovadoras ? pelo menos para a época. Quando o prefeito Francisco Pereira Passos mudou a geografia do Centro, no início do século XX, as recém-abertas avenidas Central (hoje Rio Branco) e Beira-Mar ganharam um sistema inédito de iluminação pública a eletricidade, com fiação embutida no chão. Nas décadas seguintes, boa parte da rede de energia nos bairros nobres já era subterrânea ? um benefício de contínuas obras de embelezamento que removeram construções antiquadas e criaram espaços úteis, como áreas de aterros às margens da baía. O problema é que nem sempre essas intervenções foram coordenadas entre si ou levavam em conta o que já havia sido feito. Como resultado, temos hoje sob os pés um emaranhado que junta a maior rede elétrica do Brasil, com 12 400 quilômetros de extensão, a 3 300 quilômetros de tubulações de gás, 16 000 quilômetros de água e 8 000 quilômetros de esgoto, sem contar dutos para cabos telefônicos, de transmissão de dados e sinal de TV. “Apesar de explorada há muito tempo, essa área é um caos. Desde o século XIX já se sugeria um plano racional de utilização, que nunca foi implantado”, afirma o historiador Nireu Oliveira Cavalcanti.

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Fernando Frazão
Fernando Frazão ()

Formado por uma camada de sedimentos com 10 metros de profundidade, acima de um lençol freático de 5 metros, o subsolo carioca repousa sobre uma enorme rocha chamada gnaisse facoidal, a mesma do Pão de Açúcar e do Corcovado. Antiquíssima, ela surgiu há 570 milhões de anos, na época em que todos os continentes formavam uma única massa terrestre, conhecida por Gondwana. Em condições normais, é típica de grandes profundidades, em média 20 000 metros abaixo da superfície. Seu aparecimento nessa região aconteceu em decorrência de um processo de acomodação das placas tectônicas, fraturando-se aos poucos em montanhas, morros e escarpas. Retirados de pedreiras em Botafogo, no Catete e em outras áreas, pedaços de gnaisse enfeitam prédios como o Centro Cultural do Banco do Brasil, o Palácio do Catete e o Museu Histórico Nacional. Todas as obras e escavações feitas abaixo de 15 metros de profundidade, necessariamente, atravessam essa pedra. “É um mineral resistente, mas, ao mesmo tempo, relativamente fácil de manipular e escavar”, diz o geólogo Francisco Dourado, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Fernando Lemos
Fernando Lemos ()

Na verdade, não tão fácil assim. Ao ritmo de apenas 7 metros por dia, 800 homens trabalham hoje sob a Pedra da Gávea para a construção da Linha 4 do metrô. Trata-se de uma corrida contra o tempo, para entregar a obra antes da Olimpíada de 2016. Orçado em 5 bilhões de reais, o ramal é uma peça-chave na rede de transporte que conectará a Barra, sede dos Jogos, à Zona Sul e ao Centro. No auge da construção, dentro de dois meses, o número de operários nas profundezas do maciço chegará a 1 500. Atualmente, o avanço a 140 metros de profundidade ocorre à custa de duas detonações diárias de explosivos. Cada uma consome até 1 tonelada de dinamite. Depois do “fogo”, como o processo é chamado pelos trabalhadores, é feita a retirada de entulho e a superfície do túnel recém-aberto é revestida com jatos de concreto. Desafio intransponível para os mais claustrofóbicos, a frente da obra lembra alguns cenários de filme de terror: um lamaçal emoldurado por pedregulhos quebrados e iluminado somente por holofotes. Descreve o engenheiro Eduardo D?Aguiar, gerente da obra: “Não é um lugar apenas escuro e sujo, mas também é ensurdecedor. O barulho dos caminhões e máquinas não para nunca”.

Gustavo Stephan/Ag. O Globo
Gustavo Stephan/Ag. O Globo ()
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Trabalhar embaixo da terra exige condições físicas e mentais acima da média. No Complexo do Lameirão, unidade estratégica para o abastecimento de água do Rio, essa realidade é vivida em sua plenitude. Lá, a 64 metros da superfície, funciona uma casa de máquinas onde dezesseis supervisores da Cedae se dividem em quatro equipes, revezando-se em turnos de 24 horas. Trata-se do local mais profundo da cidade. Por causa dos sete motores de 9 000 cavalos cada um, considerados o coração do sistema Guandu, a temperatura ali chega a insuportáveis 50 graus. Nada pode dar errado naquela operação. Afinal, toda a água da Zona Sul, além de partes da Barra da Tijuca, do Recreio dos Bandeirantes e de Jacarepaguá, passa obrigatoriamente por aquele complexo. Em certa medida, a trajetória percorrida pelo líquido parece um desses escorregadores de parques aquáticos. Impulsionada pelas turbinas, a água sai das profundezas para atingir uma altura de 120 metros, em direção ao topo do Morro do Lameirão. Segue, então, empurrada pela gravidade, através de um túnel de 34 quilômetros de extensão, escavado dentro da rocha, até o reservatório dos Macacos, no Horto. Construído durante o governo Carlos Lacerda, no início da década de 60, o sistema completou 45 anos no mês passado. “Na época, foi considerada a obra do século, tal era a ousadia do projeto”, lembra o engenheiro Edes de Oliveira, gerente do Complexo de Produção do Guandu.

Embora o ambiente não seja exatamente aprazível, o passeio pelas profundezas da capital revela passagens importantes da história brasileira. Com um respeitável patrimônio decorrente de quase 450 anos de ocupação contínua, as regiões mais antigas da cidade têm um subsolo coalhado de relíquias, a maioria delas simplesmente ignorada. Em março, foram encontradas em meio às obras do Porto Maravilha, na Gamboa, a menos de 1 metro, as estruturas do Cais da Imperatriz, construído pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, em 1843. Foi ali que a então princesa Teresa Cristina, recém-chegada de Nápoles, desembarcou para se casar com dom Pedro II. Aterrada em meio a sucessivas reformas urbanas, a calçada de pedra agora ficará exposta à visitação. Há vinte anos, a construção da estação de metrô São Francisco Xavier, na Tijuca, revelou a existência de 33 ossadas que pertenciam ao antigo cemitério localizado nos arredores da igreja de mesmo nome. Acredita-se que sejam os despojos de religiosos, que normalmente eram sepultados junto aos templos, até a prática ser proibida, em 1850. “Sofremos de uma severa amnésia histórica. E cada descoberta dessas é um pedaço de nossa memória que vem à tona”, diz a arqueóloga Tânia Andrade Lima, responsável pelas escavações do Cais da Imperatriz.

Stephen Alvarez/National Geographic
Stephen Alvarez/National Geographic ()

Não faltam modelos para lidar de maneira racional e organizada com o que existe abaixo da superfície. Paris é um exemplo de cidade que trata muito bem a riqueza histórica de seus subterrâneos. Ao lado de milhares de quilômetros das redes de esgoto, abastecimento e metrô, estende-se um labirinto de 290 quilômetros de extensão, escavado a partir do século XII, a 50 metros de profundidade. Em alguns pontos estão depositados ossos trazidos dos cemitérios superlotados da capital francesa. Batizada de Catacumbas de Paris, a rede de túneis é uma concorrida atração turística, rigorosamente monitorada pelo governo desde 1774. Às vésperas de sediar dois grandes eventos esportivos de visibilidade global, o Rio também tem o que aprender com Barcelona, na Espanha. Lá, um modelo digital de gestão para o subsolo, implantado entre 2002 e 2008, permite às autoridades controlar todas as intervenções feitas por concessionárias de serviços ? e com isso coordenar as ações, para evitar o irritante abre e fecha de buracos. A ideia é simples: se duas ou mais operadoras estão interessadas em fazer obra em determinada região, as outras partes interessadas são comunicadas para que o serviço aconteça conjuntamente. “O mapeamento realizado hoje é o primeiro passo para que essas ações coordenadas sejam feitas por aqui também”, afirma o engenheiro e gerente de operações da CEG, Joni Diniz Leite, responsável pelo levantamento carioca. Que bom. Já está mais do que na hora de saber onde pisamos.

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