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O ninho dos cisnes

Crianças e adolescentes enfrentam dificuldades e privações para realizar o sonho de estudar balé na escola de dança mais prestigiada do país

Por Thaís Meinicke
Atualizado em 2 jun 2017, 13h20 - Publicado em 16 out 2013, 17h54

Habituados a assistir apenas a apresentações de companhias internacionais, os cariocas não desperdiçaram a chance de ver um espetáculo diferente na noite de 19 de novembro de 1927, no Theatro Municipal. Curiosos, eles lotaram a casa para conferir a estreia dos alunos da Escola Oficial de Bailados, fundada apenas sete meses antes pela russa Maria Olenewa, discípula da lendária Anna Pavlova. No programa, o título e a descrição da peça apresentada no primeiro ato davam conta do que teriam pela frente. A coreografia se chamava “Como se faz uma bailarina” e era descrita como “ginástica, plástica, primeiros passos, por alunas e alunos do curso mais adiantado”. Era a primeira vez que bailarinos brasileiros treinados no próprio país pelas técnicas dos chamados ballets russes (balés russos) se apresentavam no mais nobre palco da cidade. O sucesso foi estrondoso. Passados 86 anos da exibição, aquele pequeno grupo de trinta crianças e jovens se transformou na mais importante escola de dança do país, hoje rebatizada com o nome de sua fundadora. Com ex-alunos contratados por corpos de baile internacionais de prestígio, como o Royal Ballet, de Londres, e o do Teatro Alla Scalla, de Milão, a instituição carioca é um mundo à parte regido por rigor, disciplina e busca obsessiva de perfeição. Nada disso afugenta as postulantes a uma vaga ali. Até o fim do mês, algumas centenas de meninas (e alguns raros meninos) se inscreverão para o processo seletivo do estágio preliminar do curso. Concluídas as provas, apenas cinquenta candidatos conquistarão o privilégio de frequentar o bonito prédio que a escola ocupa ao lado do teatro, na Cinelândia. “Ter estudado lá foi essencial para eu chegar aonde estou”, diz Roberta Marquez, primeira-bailarina do Royal Ballet.

Quem vê a delicadeza com que as crianças de 8 anos da turma inicial executam passos como pliés, dégagés e échappés não imagina como é duro treinar tais movimentos dentro do padrão exigido pela Escola Estadual de Dança Maria Olenewa. Na grande sala com pé-direito alto, a única voz que se ouve é a da professora Paula Albuquerque comandando as posições em francês. Focados em cada comando e com semblante sério, os alunos mantêm o silêncio e executam com afinco as determinações. Os exercícios começam na barra e depois evoluem para um conjunto de passos realizados no centro da sala. Com aulas de segunda a sexta-feira, o primeiro ano é, na verdade, um grande teste. As professoras dão notas bimestrais ao desempenho dos estudantes, e, após as provas finais, quem não obtém a média necessária é dispensado. Nos estágios seguintes, a cada etapa vencida, a rotina fica mais pesada, pois às atividades práticas cada vez mais exigentes se somam estudos de música, de repertório clássico, história da arte e história da dança. Ao todo, são nove degraus até a formatura, um processo que se transforma em um grande funil. “São raros os alunos que de fato chegam a se tornar bailarinos profissionais”, conta Maria Luisa Noronha, a atual diretora. Em 2013, apenas sete jovens receberão o diploma, dos 88 admitidos em fevereiro, em diferentes turmas.

Para chegar ao topo da carreira nos grandes corpos de baile do mundo é preciso fazer imensos sacrifícios e conviver com a dor física. Alguns deles chegam a ganhar contornos de provações bíblicas, muito semelhantes aos vistos no filme Cisne Negro, em que a atriz Natalie Portman vive uma bailarina que embarca em uma jornada alucinada para conquistar o papel principal de O Lago dos Cisnes. A carioca Caroline Gil, de 15 anos, aluna da Escola Maria Olenewa desde 2007, teve a dor como companheira durante os ensaios incessantes para a sua primeira variação como solista em um festival, em 2011. “Desde que comecei no balé, meu sonho sempre foi usar a sapatilha de ponta (acessório utilizado para os passos mais complexos). Estava ensaiando em ritmo forte, e formou-se uma bolha enorme no meu pé. No dia da apresentação, estava doendo muito e a professora me deu um remédio. Fiquei surpresa, porque dancei sem sentir dor, mas quando tirei a sapatilha estava tudo cheio de sangue”, recorda Caroline, que tinha 12 anos na ocasião.

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Na época em que a Escola Maria Olenewa foi criada, estudar balé era basicamente uma atividade para meninas da elite carioca. Hoje o perfil do público é bem diverso. Para muitas crianças, o curso gratuito é sua única opção para poder se dedicar à dança ? e elas não medem esforços para frequentar as aulas, não importam as dificuldades que tenham pela frente. A pequena Giovanna Muniz, 11 anos, aluna do Primeiro Básico, desenvolveu uma gastrite e teve pneumonia como decorrência do stress provocado pela rotina puxada no inicío do curso. Os obstáculos não estavam apenas na sala de aula, mas também fora dela. Moradora de Campo Grande, a menina acordava às 3h30 da madrugada para conseguir chegar ao Centro a tempo para a aula de balé, às 7 horas. “Nós pegávamos o trem até o ponto final e voltávamos para ela viajar sentada e dormir no caminho, mas ficava tão cansada que não estava se saindo bem nem na dança nem no colégio”, lembra a mãe, Ula Muniz. Por recomendação médica, ela conseguiu uma transferência para o turno da tarde, o que deixou a rotina um pouco menos exaustiva. Ainda assim, o esforço é grande. “Às vezes não temos dinheiro, e eu falo para desistirmos desse sacrifício todo, mas ela quer vir de qualquer modo. É o prazer dela, a Giovanna acha o balé muito importante. Então acaba compensando tudo”, desabafa a mãe, sem conter as lágrimas.

Há alunos que enfrentam não apenas jornadas extenuantes como também situa­ções que ultrapassam as dificuldades técnicas e os problemas econômicos. Nascida no interior de Sergipe, Catarina Santos, de 11 anos, sofreu com uma brincadeira de mau gosto feita por uma companheira de classe no ano passado. A colega, competitiva ao extremo, disse em meio a um bate-boca que Catarina nunca se tornaria bailarina profissional por ser negra. “Ela falou que eu jamais teria papéis de destaque. Fiquei muito triste e não queria mais voltar”, recorda. A menina só mudou de ideia após a insistência das professoras, que viam nela um grande talento. A recompensa veio pouco tempo depois, quando foi escolhida para ser solista do espetáculo em comemoração do aniversário da escola. O jovem Caio Santos, de 16 anos, também é vítima de preconceito, só que de natureza diversa. Morador de Piraí, no sul do estado, a 91 quilômetros da capital, teve sua aptidão revelada por um projeto social local. Aprovado na escola em 2007, ele passou a enfrentar a viagem de ida e volta diariamente em uma van cedida pela prefeitura de sua cidade. Mais que a distância e o cansaço, o que o incomoda é a forma como o tratam em Piraí. “Até hoje eu sou o único menino que dança balé lá. Já houve dois outros que começaram, mas desistiram por causa dos comentários das pessoas”, diz ele, que, após se destacar em um curso de férias no Miami City Ballet, em julho deste ano, ganhou uma bolsa e está prestes a embarcar de vez para os Estados Unidos, em janeiro próximo.

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Exemplos de superação como Giovanna, Catarina e Caio, em que o talento e o amor à dança acabam levando-os a superar os obstáculos, são exceções. A maior parte dos alunos, confrontados com contínuas dificuldades, acaba mesmo desistindo. Andressa Rodrigues, hoje com 13 anos, reside em Cordovil, na Zona Norte, e ingressou na escola em 2008, na série Preliminar. Chegou a participar de espetáculos e viagens para festivais com as outras bailarinas. Como a mãe não podia levá-la às aulas, ela pagava uma acompanhante para ir com a garota até o Centro. “Mas chegou uma hora em que a pessoa também não podia ir mais e ficamos sem ter o que fazer. Às vezes, a Andressa ia sozinha, mas eu tinha medo porque ela era muito nova para pegar ônibus na Avenida Brasil sem um adulto junto”, relata a mãe, Larissa Rodrigues. Quando Andressa chegou a níveis mais avançados, a rigidez das aulas colaborou para que ela se desanimasse com a rotina pesada e decidisse, depois de quatro anos, deixar as aulas. “Eu sei que o balé é rígido, mas acho que há um pouco de exagero nesse modelo”, desabafa Larissa. Apesar de serem normais na rotina de quem quer seguir carreira no balé, os esforços feitos pelas crianças desde tão novas não são vistos com bons olhos pelos profissionais de saúde. Especialista em medicina do esporte, o médico Daniel Kopiler afirma que, com uma agenda tão intensa de ensaios, é comum que as meninas apresentem problemas articulares e musculares. “Como na puberdade o corpo ainda está passando por um período de adaptação, elas podem sofrer deficiências hormonais e o risco de lesões é maior”, explica.

Herança da fundadora Maria Olenewa, ela mesma uma mulher extremamente rigorosa e perfeccionista, a obsessão pela excelência é um traço comum entre a escola carioca e similares do mesmo porte espalhadas pelo planeta. Em um meio extremamente competitivo, a dedicação e a disciplina acabam sendo determinantes para quem sonha com uma carreira bem-sucedida nos palcos mais prestigiados. “Ali aprendemos valores como educação, responsabilidade, respeito e admiração aos mais experientes, determinação e foco. São coisas que aplico na minha vida e que me ajudam a conquistar metas até hoje”, explica Cláudia Mota, uma das primeiras-bailarinas do Theatro Municipal do Rio. Afinal, que são as dores, o cansaço e a pressão psicológica para moças e rapazes que sonham rodopiar e voar pelos palcos?

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