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A voz que vem das ruas

As manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus ressuscitaram a tradição carioca de sair em passeata para tentar mudar o país

Por Felipe Carneiro, Ernesto Neves, Carla Knoplech e Bruna Talarico
Atualizado em 5 jun 2017, 13h58 - Publicado em 26 jun 2013, 16h24

Nas duas últimas semanas, as ruas do centro do Rio de Janeiro, que já foram palco de importantes acontecimentos da história do Brasil, voltaram a atrair a atenção do país e do mundo. Elas receberam dezenas de milhares de cariocas indignados com o reajuste de 20 centavos na tarifa dos ônibus. Apenas na segunda (17), 100?000 pessoas abarrotaram as avenidas Presidente Vargas e Rio Branco. Na quinta (20), foram outras 300?000, ou quase 5% da população carioca. Além de protestarem contra o aumento (que conseguiram, de fato, derrubar na quarta-feira), os cidadãos pediam o veto à proposta de emenda constitucional que tira do Ministério Público o poder de investigação criminal (a PEC 37), hospitais tão bons e modernos quanto os estádios usados na Copa das Confederações, a punição à corrupção e o fim dos abusos policiais e de muitos outros males que assolam a nação. Tão amplo quanto a pauta foi o entusiasmo dos manifestantes. E nem mesmo a ação descerebrada de delinquentes que depredaram o Palácio Tiradentes, incendiaram carros e deixaram rastros de destruição em vários pontos da região central tirou a grandiosidade da multidão caminhando pacificamente pela cidade. O movimento, sem líderes nem vínculo partidário, não nasceu no Rio. Começou em Florianópolis, tomou corpo em São Paulo, mas em nenhum lugar juntou tanta gente quanto na nossa capital. Daqui saíram as imagens que estamparam as reportagens nos sites do diário francês Le Monde e da revista inglesa The Economist, sem contar a foto na primeira página do jornal The New York Times, em que um policial lança um jato de gás de pimenta no rosto de uma manifestante. “Seja pela visibilidade, seja pela tradição nos protestos, o Rio tem esse poder de se transformar em uma caixa de ressonância do Brasil”, diz Américo Freire, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC) e autor do livro Grandes Manifestações no Rio de Janeiro. “Quando a voz do Rio se ouve, transforma-se na voz do resto do país.”

foto: Fernando Lemos
foto: Fernando Lemos ()

Ao longo da história tem sido assim. Sempre que o carioca abraça uma causa, ela ganha relevância e, não raro, leva a desdobramentos inesperados. É um fenômeno que remonta a quase dois séculos. “O período entre a independência e o início do Segundo Reinado foi muito agitado, com inúmeras manifestações na área central da cidade, algumas decisivas para o futuro do Brasil”, relata José Murilo de Carvalho, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. É o caso da passeata pela maioridade, de 1840, quando uma multidão se aglomerou em frente ao Paço Imperial em um meeting (como eram chamados os protestos) para pedir a antecipação em quatro anos da coroação de dom Pedro II, na ocasião com 14 anos de idade. Ali, garantiu-se a unidade do país, convulsionado por revoltas separatistas. Um século depois, em 1942, uma grande mobilização que juntou milhares de pessoas no Catete tornou-se decisiva para que o Brasil entrasse na II Guerra Mundial ao lado dos Aliados, no momento em que Getúlio Vargas dava sinais de que poderia se alinhar aos nazifascistas. Em 1964, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade lotou a Candelária com o objetivo de respaldar o regime militar e, apenas quatro anos mais tarde, o Centro foi ocupado novamente, dessa vez por um mar de gente que protestava contra a ditadura na chamada Passeata dos Cem Mil. Em 1984, foi a vez de a Avenida Presidente Vargas receber 1 milhão de pessoas, no maior comício da campanha que pedia eleições diretas para presidente da República, as Diretas Já!. “O Rio tem essa vocação para os temas nacionais, mais até do que para seus próprios problemas urbanos”, explica Carvalho. “De monarquistas a republicanos, getulistas e lacerdistas, gente favorável e contrária aos militares, a cidade sempre foi palco de mobilizações de impacto.”

Foto: Fernando Lemos
Foto: Fernando Lemos ()

Os motivos que de fato levaram à súbita erupção popular das últimas semanas ainda intrigam cientistas políticos, sociólogos, antropólogos e outros especialistas dedicados a destrinchar a dinâmica das mobilizações. Mas há uma espécie de consenso sobre o fato de o longo jejum de protestos das últimas décadas ter funcionado como combustível extra. Compartilhavam as ruas desde jovens e adolescentes fascinados com a possibilidade de exercitar seus direitos civis em meio à multidão até militantes mais maduros, que viam nas passeatas uma reedição de marchas do passado. Comparações com a campanha das diretas e o “Fora Collor!”, de 1992, por exemplo, eram inevitáveis entre os veteranos das palavras de ordem. “Foram dois acontecimentos que entraram para a história, e acredito que estamos assistindo a outro momento emblemático”, diz o ator Marcio Libar, 47 anos, que foi protestar com sua filha Giuliana, de 27. “O que mais impressiona atualmente é a ausência de viés partidário e a capacidade de juntar tanta gente diferente.” Talvez haja algum exagero em tamanho entusiasmo, mas é fato que, desde os atos pelo impeachment de Fernando Collor, nunca tantos marcharam juntos quanto nos últimos dias. “O protesto contra o aumento no preço da passagem trouxe à tona um debate que é sensível a todos: o desleixo das autoridades com relação a serviços públicos como transporte, saúde e educação”, afirma Ricardo Ismael, cientista político da PUC-Rio. Outro fator decisivo foi a dura repressão policial. “Houve indignação generalizada contra a resposta desproporcional do estado a uma causa que é justa.”

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Entre os impagáveis aforismos criados pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, um dá a exata medida de nosso caráter contestatório. “No Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio”, escreveu. É notória a disposição do carioca para se manifestar. No táxi, no botequim, na fila do banco, em eventos esportivos e culturais, o morador do Rio tem por hábito exprimir de forma eloquente o que pensa sobre as autoridades e decisões do governo ? é quase sempre contra. Esse espírito é de tal forma entranhado no nosso DNA que passa de geração em geração. Muito desse engajamento decorre diretamente do fato de termos sido a capital do país por quase 200 anos. Sempre circularam por aqui figuras influentes da política, da diplomacia e do Judiciário, bem como artistas e intelectuais atraídos por universidades, editoras, teatros e jornais sediados na cidade. A fundação de Brasília esvaziou muito esse cenário, mas não foi capaz de alterar o estado de espírito dos cariocas, encantados por novidades, modismos, comportamentos de vanguarda e por tudo que esteja associado à efervescência de ideias. “É um panorama muito parecido com o que sê vê em Buenos Aires, outra metrópole famosa pela mobilização popular”, compara Américo Freire, da FGV. “Assim como na capital argentina, somos engajados e gostamos de nos manifestar.”

Tamanho caldo cultural se alia a uma disposição física e geográfica da cidade que facilita a aglomeração. Tanto o núcleo financeiro quanto o centro político e toda a burocracia pública estão localizados na mesma região ? diferentemente de São Paulo, por exemplo, cidade multicêntrica, onde muitos quilômetros separam as diversas instâncias de poder. Tal configuração, baseada na herança dos tempos de capital imperial, favorece o deslocamento das multidões entre os pontos nevrálgicos. E isso já acontece há um bom tempo. Na virada de 1879 para 1880, a chamada Revolta do Vintém tornou-se a primeira manifestação a convulsionar várias áreas do Centro ? e a assustar o governo. Na ocasião, 5?000 pessoas foram a São Cristóvão protestar na frente do Palácio da Quinta da Boa Vista, residência de dom Pedro II, contra um imposto de 20 réis (uma moeda de cobre, conhecida como vintém) sobre a passagem de bonde. Ao ser repelido pelos guardas, o povaréu percorreu a pé os 5 quilômetros até a atual Praça Quinze. No percurso, o movimento foi engrossando com a adesão de trabalhadores do Centro. Do Paço, os manifestantes seguiram para o Largo de São Francisco, ponto final das linhas de bonde. Chegando ao largo, um grupo de manifestantes jogou paralelepípedos em soldados do Exército, que abriram fogo contra os civis. Os relatos divergem entre três e dez mortos. Furioso com a reação destemperada, o imperador destituiu todo o gabinete de ministros para aplacar a crise que ameaçava balançar seu trono e cancelou o tributo. “Aqui as multidões sempre estiveram muito próximas do poder, o que por si só já é um considerável mecanismo de pressão popular”, afirma Rômulo Mattos, historiador da PUC-Rio.

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A combinação de elementos que torna o Rio tão peculiar em suas manifestações de massa inclui ainda um toque de glamour que não se encontra em outros lugares. Capital cultural do país, a cidade é há décadas e décadas uma espécie de ímã para artistas e intelectuais, vocação que se reforçou ao se tornar o principal polo de produção de programas de TV e cinema. E estrelas das novelas e da música popular, como se sabe, são grandes catalisadoras do pensamento coletivo. O comício das Diretas Já!, não custa lembrar, tornou-se muito mais atraente para parte do 1 milhão de manifestantes ao ter no palco uma constelação de músicos e atores engajados na campanha, como Christiane Torloni, Mário Lago, Fafá de Belém, Chico Buarque e Martinho da Vila, ao som de Milton Nascimento cantando Coração de Estudante. No mínimo, a aparição de figuras tão populares tornou bem mais eloquentes os discursos de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, que capitanea­vam o elenco de políticos. Nos protestos da última semana, emprestaram seu brilho celebridades como o ator Bruno Gagliasso, a modelo Yasmin Brunet e as atrizes Thaila Ayala, Debora Nascimento e Leandra Leal. “Passei todo o fim da tarde na Rio Branco, depois troquei de roupa dentro do Teatro Rival e vim direto para a festa. Não dava para ficar de fora de um momento tão especial como este”, explicava Leandra durante a pré-estreia do remake da novela Saramandaia, na noite de segunda-feira, no Museu de Arte do Rio, localizado na Praça Mauá, a apenas algumas centenas de metros do local onde vândalos depredavam os prédios do paço e da Alerj.

A atual onda de protestos que varreram o Rio e outras cidades brasileiras faz parte de um fenômeno global que tem espocado em países tão diversos quanto Estados Unidos, Egito, Tunísia, Grécia e Turquia. Trata-se da mobilização, de caráter basicamente jovem, articulada por meio das redes sociais. Com difusão rápida e sem nenhuma possibilidade de controle, ativistas conseguem, em poucos minutos, divulgar seus manifestos e operacionalizar convocações para atos públicos. Sem vínculo partidário nem lideranças constituídas e muitas vezes com uma pauta de reivindicações difusa e abrangente, os movimentos tiram sua força da maciça divulgação pelo Facebook, Twitter, Instagram e sites de compartilhamento de vídeos como o YouTube. “Fiquei sabendo da passeata quando criaram o evento nas redes sociais. Adorei a experiência e quero ir de novo”, conta Ana Szwarcfiter, de 17 anos, aluna do 3º ano do ensino médio da Escola Parque, na Gávea. Cerca de oitenta alunos do colégio estiveram na passeata de segunda-feira depois da convocação pela página do grêmio no Facebook. “Foi dessa forma que combinamos fazer cartazes na hora do recreio”, diz Henrique Machado, colega de classe de Ana. Animado com o súbito engajamento cívico, o grupo promete não abandonar a mobilização. Já programa uma passeata na Avenida Marquês de São Vicente contra os preços cobrados nas lanchonetes da Gávea e os assaltos a estudantes no bairro. É a nova geração de militantes da causa comum mantendo a carioquíssima tradição de botar a boca no trombone.

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