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O desafio de ter um filho transgênero

Histórias de pais que acompanham e apoiam a trajetória dos filhos no difícil processo de mudança de sexo

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 25 mar 2017, 13h00 - Publicado em 25 mar 2017, 13h00

Em questões complexas, com forte conotação moral ou cultural, costumam-se invocar a frieza e a exatidão da ciência para criar parâmetros racionais que fundamentem interpretações e decisões. No entanto, há territórios em que essa visão cartesiana cai no vácuo. Há três anos, a Associação Americana de Psiquiatria, instituição que serve de guia à maioria dos profissionais do ramo, chamou de disforia de gênero o distúrbio que leva as pessoas a sofrer de um brutal incômodo com seu sexo biológico. O termo um tanto quanto vago é usado para definir um estado de angústia e desespero que faz com que seus portadores se sintam presos a um corpo que não corresponde a sua personalidade. Eles mesmos não compreendem o que se passa. Como resultado, costumam isolar-se e não raro embarcam em um processo de autodestruição. “É uma situação de muito sofrimento, em que algumas pessoas chegam a se ver como aberrações”, diz o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Nos últimos anos, uma avalanche de séries, documentários e filmes, como o vencedor do Oscar A Garota Dinamarquesa, trouxe ao grande público dilemas que existiam apenas em um universo restrito e cercado de tabus. A palavra transexual e sua versão mais popular, trans, incorporaram-se ao vocabulário corrente, embora sempre tivessem deixado um rastro de dúvidas. O que leva essas pessoas a realizar cirurgias mutiladoras e tratamentos tão complexos? Tal risco é justificável diante dos resultados dessas intervenções? E como um pai e uma mãe devem lidar com um filho nessa situação? Essa última talvez seja a pergunta mais dura, mas é a única para a qual os especialistas têm resposta. Há um consenso entre eles de que o amparo familiar é crucial. “Jamais diria que é uma situação fácil para os pais. É terrível. Mas a aceitação e o apoio deles minimizam consideravelmente o sofrimento”, explica Karen Seidel, coordenadora do Ambulatório de Disforia de Gênero do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede). Nas próximas páginas, VEJA RIO mostra como seis famílias têm lidado com essa situação.

(Felipe Fittipaldi e acervo pessoal/Veja Rio)

“Dói vê-la com barba, mas aceito” – Janaína de Sousa

Nascida em um lar religioso, a primeira filha de Janaína e Alberto de Sousa, loirinha e de olhos azuis, era paparicada como uma princesa. Entretanto, embora os pais não percebessem, ela passou a infância distante das outras crianças, sem amigas nem amigos na escola. Aos 11 anos, procurou o pastor da igreja que frequentava e revelou que sentia atração por mulheres. “Foi um choque. Buscamos ajuda de profissionais e achávamos que passaria”, conta o pai, de 53 anos. “Eu também carregava uma culpa imensa, vivia uma crise de identidade, não sabia quem eu era, nem sequer se era gente”, diz Ollie, que rejeitou seu nome de batismo e hoje prefere ser chamado dessa forma. Adolescente, chegou a ir a um culto pentecostal para exorcizar o demônio que acreditava ter dentro de si. Quando ela completou 15 anos, os parentes insistiram que comemorasse a data fazendo um book com um vestido de festa. Nas fotos, exibe um sorriso forçado. Dias depois, trancou-se no banheiro, tosou os cabelos e jogou tudo no lixo. Embora os pais tentassem lidar da melhor forma que podiam com a homossexualidade da filha, ela entrou em depressão, abandonou os estudos, sumiu por vários dias, buscou refúgio nas drogas e tentou o suicídio. Com o apoio de uma psicóloga, aos 17 anos descobriu que era transgênero. “Não entendi nada, até confundi transgênero com transgênico”, recorda a mãe. “Dói vê-la com barba e não entendo essa transformação, mas aceito porque amo minha filha”, diz Janaína, de 48 anos. “Eu creio na cura divina, mas, se ela quer virar homem, o meu papel é estar ao seu lado”, completa Alberto. Ollie, agora com 25 anos e estudando filosofia, está em processo de transição, toma hormônios e sonha retirar os seios.

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(Felipe Fittipaldi e acervo pessoal/Veja Rio)

“Hoje até compro cuecas para ela” – Maria Lúcia Reibolt

Para quem conhece a história do rapaz parrudo, de pernas cabeludas, barba rala e voz grossa, a primeira pergunta é inevitável: como ele prefere ser chamado? A resposta é simples e direta: “Pode me chamar de Gabriela, Gabriel, Gab ou Gabizão. É confuso mesmo”. Na família do estudante de 23 anos, que no registro civil leva o nome de Gabriela Reibolt, a maneira de chamá-lo também é meio atrapalhada — sempre escapa um pronome feminino. Na rua, tanto a mãe, Maria Lúcia, quanto o pai, Paulo, se policiam para não chamar o rapagão de filha. Até chegarem a esse estágio, precisaram enterrar sonhos e superar preconceitos. “Idealizava minha menina linda casando-se de noiva, só que ela sempre foi diferente. Eu via, mas não queria enxergar”, diz Maria Lúcia. O processo de transformação de Gabriela foi gradativo. Adolescente, ela informou à família que era lésbica. A mãe ficou sem chão. O pai deu as costas à filha, atônito. Pouco depois voltou e surpreendeu a jovem: “Você está feliz? Então para mim é só isso que importa”. Há dois anos, Gabriela começou a deixar claro que pretendia ir além. Raspou o cabelo, iniciou o tratamento com testosterona e agora planeja fazer mastectomia. “Por um filho a gente faz tudo. Compro até cuecas para ela”, diz a mãe, sem se importar mais com a estranheza da frase. Para o pai, não interessa o que os outros pensam: “Só tenho medo de que ela seja discriminada”.

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(Felipe Fittipaldi e acervo pessoal/Veja Rio)

“Dá um baita medo com relação ao futuro” – Bruno Codeço

B., de 5 anos, é um menino igual a muitos outros de sua idade, mas alguns detalhes de seu comportamento chamam atenção. Um deles é a irrefreável atração pelas princesas da Disney, a ponto de fazê-lo querer vestir-se como elas. “Ele sempre foi um menino com muita imaginação, mas percebemos que era muito mais encantado pelo universo feminino”, conta a mãe, a consultora de imagem Marina Bruno, de 33 anos. “Ficamos mais atentos quando B. começou a verbalizar essa afinidade”, acrescenta o pai, o bancário Bruno Codeço, de 35. Nos últimos tempos, o garoto passou a se referir a si mesmo no feminino e, mais de uma vez, ao fazer xixi, sentou-se no vaso. Interpelado, respondeu: “Estou treinando para ser menina”. Quando desenha sua família, a criança também sempre se representa como uma garotinha. Marina e Bruno inicialmente buscaram a ajuda de profissionais ligados à família, mas nunca reprimiram o filho. Tanto que a festa de 5 anos de B. teve como tema a Pequena Sereia. O menino fez questão de vestir-se de Ariel. Alertado de que alguém poderia rir dele, mostrou-se irredutível — e passou o aniversário felicíssimo. O casal agora se prepara para levá-lo ao Ambulatório de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas de São Paulo, que recebe crianças. “Dá um baita medo com relação ao futuro”, diz o pai. “Em casa, ele sempre terá nosso apoio. Mas lá fora a gente nunca sabe.”

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(Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

“Sofri, chorei, mas jamais vou abandonar minha filha” – Solange Pacheco

Cada vez que o filho Lucas se tornava foco de sua atenção, a dona de casa Solange Pacheco, de 52 anos, costumava repetir para si mesma, como uma espécie de mantra: “Com o tempo, isso vai mudar”. Entretanto, conforme o garoto crescia, as características que tanto a incomodavam só ficavam mais acentuadas. O estranho hábito de trancar-se no quarto para vestir as roupas da mãe virou uma obsessão por sapatos de salto e maquiagem. “Embora eu me preocupasse, achava que era coisa de criança e que passaria”, recorda a mãe. Para o filho, a questão era de uma natureza completamente diferente. “Eu nunca me considerei um homem, sempre tive isso muito claro, mas guardava só para mim”, acrescenta Lucas, que agora se chama Ana Lúcia. O desconforto do menino era tal que ele tinha certeza de que havia nascido no corpo errado, um sentimento que se intensificou ao longo dos anos. Aos 16 anos, o rapaz comprou seu primeiro vestido. “Apanhei na rua e fui chamada de lixo. Ninguém me entendia. Eu não me via como um gay e me sentia um alienígena”, explica. A mãe tentava atenuar os embates entre o garoto e o pai. “Meu marido nunca entendeu. Acha que é só ela cortar o cabelo e botar uma calça que vai virar homem”, comenta Solange. Apoiada pela mãe, Ana Lúcia faz tratamento para mudar de sexo. “Sofri muito, chorei, mas ela é minha filha. Está linda e jamais vou abandoná-la.”.

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(Felipe Fittipaldi e acervo pessoal/Veja Rio)

“Fiz simpatia e promessa. Em vão” – Lucineria da Silva

Durante anos, a costureira Lucineria da Silva perguntou-se onde havia errado, pois não conseguia entender a razão de sua filha, ainda menina, rejeitar vestidos, querer cortar os cabelos rente à cabeça e, para piorar, roubar as cuecas do irmão. A situação agravou-se quando a mãe descobriu que, na adolescência, a garota andava vestida como homem na rua. Na mesma época, ao ler o diário da filha, descobriu que ela se relacionava com meninas. Ainda assim, seguia firme na decisão de pôr a jovem Jordana, hoje Jhordan, nos eixos. “Fiz simpatia, promessa, tudo em vão. Comecei a achar que, se ela se casasse, seria a salvação”, recorda Lucineria, de 55 anos, moradora de Carmo, no interior do estado. Ao saber que havia na cidade um rapaz interessado nela, fez de tudo para juntá-los. Jordana, então com 17 anos, acabou perdendo a virgindade com o jovem. Foi o que bastou para a mãe exigir o casamento. “Meu padrasto usou uma arma para intimidar o coitado”, recorda Jhordan. A moça casou-se na igreja matriz da cidade, em uma festa com 300 convidados. “O casamento durou seis meses e seis longos dias”, lembra. Desfeita a união, Jordana saiu de casa, assumiu a persona masculina e foi trabalhar como barbeiro. Passou anos sem ver a mãe nem falar com ela. “Eu me arrependo muito. Se eu tivesse mais informação na época, todo esse sofrimento teria sido evitado”, lamenta Lucineria. Hoje, aos 36 anos, Jhordan entrou com um processo para mudar seu nome e namora outro transgênero, que, nascido homem, tornou-se mulher. “Agora sou o cara que sempre quis ser”, diz.

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(Felipe Fittipaldi e acervo pessoal/Veja Rio)

“Tenho orgulho de sua batalha” Carmosina Marra

A funcionária pública Carmosina Marra perdeu as contas das vezes que viu pessoas na rua se cutucarem e cochicharem quando passava com o filho caçula, hoje a modelo e atriz Carol Marra, 31 anos. Invariavelmente, o motivo do falatório era a aparência afeminada do menino. Assim que chegavam em casa, o então garoto era posto de castigo. “Eu não compreendia por que, mesmo com roupas masculinas, ele não perdia aquele jeito feminino. Eu achava que era culpa dele”, diz Carmosina, de 72 anos. Ela e o marido, que morreu no ano passado e jamais conversou sobre a questão com Carol, não entendiam o comportamento arredio do filho. “Eu tinha medo de apanhar dos outros meninos, que sempre me ridicularizavam”, relembra Carol, que prefere não revelar o nome de batismo. Ao entrar na faculdade, o jovem adotou uma aparência andrógina. Quando ele tinha 21 anos, uma psicóloga que o acompanhava chamou seus pais para uma conversa, e só então eles entenderam o que se passava. Não era um caso de homossexualismo, mas de transexualismo. “Meu marido chorou muito e ficou desgostoso”, conta Carmosina. A partir daquele dia, Carol iniciou um tratamento com hormônios, fez plásticas e a mudança completa de sexo. “Tenho orgulho de sua batalha”, afirma a mãe.

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