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Naldo chegou lá

Criador do bordão ?vodca ou água de coco?, o funkeiro da favela da Maré enfrenta uma rotina alucinada de shows e tenta provar que seu talento vai além de uma única música de sucesso

Por Sofia Cerqueira, colaborou Louise Peres
Atualizado em 5 jun 2017, 14h07 - Publicado em 20 mar 2013, 16h52

Qualquer pessoa que tenha sintonizado uma rádio com parada de sucessos ou entrado em uma loja de CDs e DVDs de uns tempos para cá já ouviu uma canção grudenta que começa com os versos “Vodca ou água de coco / Pra mim tanto faz / Gosto quando fica louca / E cada vez eu quero mais”. Alguns que frequentaram festas de aniversário ou casamento nos últimos meses provavelmente até dançaram no compasso contagiante da melodia. Pois bem, o responsável por tamanho êxito é o ex-engraxate, ex-garçom, ex-vendedor de balas e ex-segurança em um supermercado Ronaldo Jorge Silva, ou simplesmente Naldo, 32 anos. Filho de um soldador elétrico e uma zeladora de uma igreja evangélica, ele nasceu no Complexo da Maré em uma família de oito irmãos (é o quarto da fila). A música com o fraseado acima, junto com mais um punhado de estrofes apelativas, se transformou no maior hit do país, Amor de Chocolate. O clipe oficial soma hoje 20 milhões de exibições na internet. Na loja virtual iTunes Brasil, a canção está em primeiro lugar, à frente de Esse Cara Sou Eu, de Roberto Carlos. O mais surpreendente é que o fenômeno não se restringe à classe C emergente, mas se espalha também por festas badaladas realizadas em salões e bufês de luxo de todo o país. “A música dele mistura ritmo dançante, melodia fácil e letras sensuais, elementos da cultura pop que agradam a todos os públicos”, avalia o baterista e pesquisador musical Charles Gavin. “É coisa como a Macarena ou o Gangnam Style, do rapper sul-coreano Psy.”

Sucesso entre adolescentes e até mesmo entre o público mais maduro, Amor de Chocolate alavancou a carreira de Naldo, um artista que passou os últimos dez anos apresentando-se nos morros, subúrbios e na Baixada Fluminense. Hoje ele pode ser encontrado tanto nos palcos de festas badaladas (no dia 7, pôs 600 empresários e executivos para requebrar na festa de aniversário da agência de publicidade Lew?Lara/TBWA em um bufê chique de São Paulo) quanto em shows para 30?000 pessoas (iguais ao que fez em Cuiabá, Mato Grosso, no dia seguinte). Em ambos os casos, além de ouvir a canção do momento, a plateia acabou brindada com pérolas de gosto para lá de duvidoso, como em Exagerado (“Pega o sorvete com Leite Moça / Esfrega e deixa bem lambuzado”) ou Chantilly (“Traz champanhe e sabe me enlouquecer / Pega o chantilly na hora de sentir prazer”). No dia 26, será a vez de mostrar seu excêntrico repertório no Vizcaya Museum, de Miami, onde acontece o Gala BrazilFoundation, baile beneficente com celebridades, esportistas e empresários brasileiros e americanos. “Trabalhei muito para chegar aqui. Para mim isso é só o começo”, diz o funkeiro.

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Está longe de ser um discurso vazio. Animado pelo repentino estrelato, Naldo demonstra um apetite voraz para aproveitar cada segundo da boa fase. Faz trinta shows por mês, às vezes três por noite. Em março não terá um único dia de folga. “Ele é um obstinado, que começou bancando o primeiro CD e continua trabalhando como se fosse um iniciante”, afirma seu empresário, Marcos José Menezes. Dormir, por exemplo, é desnecessário. Apenas três horas por noite bastam, segundo o cantor, mais os cochilos a bordo de aviões, carros de aluguel, ônibus ou vans. Na segunda-feira 4 de março, aproveitou o trânsito caótico de São Paulo para embalar um sono profundo enquanto ia para a gravação de um programa de auditório. Comer também se resume às necessidades básicas. Nesse mesmo dia, a última refeição (frango assado com sashimi, tudo junto mesmo) havia sido feita na noite anterior, doze horas antes, em Maceió. O périplo tivera início na quinta-feira 28 de fevereiro, em um deslocamento de 21 289 quilômetros. Ao todo foram seis voos de carreira, um de jatinho particular e oito horas de ônibus. Não à toa, ele anda com a boca cheia de aftas. Mas os ganhos compensam. Naldo não sai de casa por menos de 80?000 reais. O valor não chega à metade dos 180?000 cobrados por Michel Teló, mas garante um confortável faturamento bruto de 2 milhões ao mês.

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Seja no rock?n?roll, no rap ou em qualquer estilo musical contestatório, a origem humilde e um histórico de superação costumam ajudar na formação da imagem para o público. Isso, Naldo tem de sobra, pois sobreviveu a uma das regiões mais violentas da cidade. Seu irmão Lula, com quem fazia dupla no início da carreira, não teve a mesma sorte. Em julho de 2008, o rapaz de 23 anos foi assassinado e teve o corpo carbonizado por traficantes em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas ? Naldo não fala sobre o assunto. Pelas suas contas, cerca de 85% dos colegas de infância morreram em decorrência do envolvimento com o crime e as drogas. Hoje, trocou a Maré por um casarão de quatro andares em Jacarepaguá, mas os pais e três dos irmãos ainda estão por lá. Os vínculos com a favela seguem fortes. Alguns pegam bem para quem enriqueceu. Até hojeNaldo corta o cabelo em um salão local e promove todo fim de ano uma pelada de famosos (é amigo dos jogadores Romário e Ronaldo Fenômeno). Outras relações são constrangedoras e perigosas. Recentemente, a polícia encontrou uma foto em que o funkeiro aparece ao lado de Marcelo Santos das Dores, o Menor P, traficante no complexo. “Sou uma pessoa pública. Vivo sendo abordado para tirar fotos em qualquer lugar”, justifica. O fato é que o funk e o tráfico sempre mantiveram ligações perigosamente próximas nesses territórios, o que não raro acaba em tragédia. Em dezembro, um DJ dos bailes locais, Raphael Rodrigues Paixão, de 26 anos, foi morto por bandidos como vingança por tocar em uma festa promovida por um grupo rival. “Em lugares assim, as pessoas precisam entender as regras e ter muito jogo de cintura”, analisa José Junior, coordenador do grupo Afroreggae.

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É difícil explicar o que diferencia Naldo dos seus pares menos aclamados. O processo criativo que leva à produção das canções, evidentemente, não tem nada de complexo. Ele batuca as letras permeadas de vulgaridades no bloco de notas do iPhone durante as viagens. A melodia vai sendo composta simultaneamente aos versos, sem nenhum instrumento, só no lá-lá-lá. Segundo ele, há pelo menos 200 canções já prontas para ser gravadas. Meu Corpo Quer Você, sucesso que está na novela Salve Jorge, por exemplo, vem do tempo em que ele morria de tédio como vigia de supermercado. Sua formação musical é escorada na experiência como cantor de coral da igreja evangélica e na eclética coleção de discos de Michael Jackson, Menudo, Tim Maia e Fábio Júnior pertencente à irmã. Fã da cultura americana e da black music, hoje se inspira no exemplo de astros como Chris Brown (famoso também pelos sopapos que deu em sua mulher, a cantora Rihanna), os rappers Usher, Flo Rida, Tyga e Bushman. A admiração é tanta que, desde 2010, ele já esteve oito vezes nos Estados Unidos e agora planeja comprar uma casa em Miami. Na última vez que pisou o solo americano, logo após o Carnaval, começou a preparar terreno para uma possível carreira internacional. Encontrou-se com empresários na Flórida, fez uma música em parceria com os rappers americanos Timbaland e Fat Joe (com quem já lançou o hit Se Joga), gravou seis canções para o próximo DVD, previsto para o segundo semestre, e tem planos de lançar um CD em espanhol neste ano. Quatro gravadoras já mostraram interesse em levar suas composições para a Europa. “Ele tem grande potencial, com o som original e um estilo parecido com o nosso”, entusiasma-se o agente Xerxes Frechiani, o Double X, que trabalha com Fat Joe. Imagine como suas letras ficarão no idioma de Cervantes.

fotos Henrique Pinguim / FM O Dia. (Flo Rida) e divulgação
fotos Henrique Pinguim / FM O Dia. (Flo Rida) e divulgação ()

Se no conteúdo ainda são necessárias adaptações, na aparência o funkeiro já se assemelha bastante a seus ídolos gringos. Em seu closet estão guardados cerca de cinquenta relógios, boa parte da marca americana Invicta, 300 bonés, a maioria de times de basquete, e 500 tênis, sua maior paixão. São tantos que não cabem mais no armário. Há modelos empilhados até na sauna, entre eles um Maison Martin Margiela, que custa inacreditáveis 10 000 dólares o par. Ele também gosta de desfilar com correntes de ouro, brincos de brilhantes e roupas de grife. Apesar de assumir claramente o esbanjamento, reclama: “No Brasil o sucesso incomoda. O rapper americano compra um Rolex, tira foto e posta no Instagram. Se eu fizer isso, vão dizer que estou ostentando”, queixa-se. Mesmo assim, Naldo faz questão de contrabalançar seus hábitos extravagantes com histórias edificantes dos tempos de pobreza. Nas entrevistas, por exemplo, virou um clássico o episódio em que conta ter coberto com papelão os furos de um par de tênis Nike usado e pintado com caneta hidrocor para parecer novo.

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Articulado, dono de um entusiasmo cativante, Naldo é daqueles sujeitos carismáticos que não têm dificuldade para conquistar as pessoas ? incluindo astros de Hollywood. Em sua visita ao Rio durante o Carnaval, o ator Will Smith, famoso por sua ligação com causas sociais, fez questão de conhecê-lo. Não raro, a simpatia acaba reforçada por uma autenticidade incomum. Em um recente passeio a Orlando, Naldo surpreendeu até mesmo os amigos mais próximos ao revelar que não tinha a menor ideia de quem era Harry Potter. Em Las Vegas, seu deslumbramento com a Veneza de araque do hotel-cassino The Venetian beirou o constrangimento. Ao lado de sua mulher, Ellen Cardoso, ex-dançarina do Créu e também conhecida como Moranguinho, esbaldou-se nos passeios de gôndola pelos canais falsos. “Foi romântico à beça”, recorda. Deliciado com o sucesso, sonha em cantar suas músicas em um show na Times Square, em Nova York. Será que consegue? “Ainda é preciso tempo para ver se ele é uma estrela de verdade ou um cometa, que brilha apenas por uma temporada”, pondera o empresário José Victor Oliva, que o contratou para cantar no Camarote da Brahma deste ano. De fato, Naldo tem um longo caminho a percorrer e provar que é capaz de ir muito além do refrão simplório e da letra de duplo sentido que gruda nos ouvidos para se firmar como artista.

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