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Entre a bermuda e o fardão

Nascido em Botafogo, Fernando Henrique Cardoso, recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras, resgata suas origens cariocas depois de ter passado quase toda a vida fora do Rio

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 5 jun 2017, 13h57 - Publicado em 3 jul 2013, 19h00

Em meio ao trânsito caótico e ao vaivém de moradores que tomam a entrada da Rocinha junto à Estrada Lagoa-Barra, um Vectra preto estacionou em frente a uma farmácia. O motorista, de cabelos grisalhos penteados para trás, desceu do automóvel, acompanhado de uma mulher bem mais jovem. Juntos, entraram no estabelecimento. O balconista, entre espantado e incrédulo, entregou o medicamento solicitado pelo cliente e sua acompanhante. Afinal de contas, não é todo dia que um ex-presidente da República ? e, desde a última quinta-feira, também imortal da Academia Brasileira de Letras ? aparece ali para comprar remédios. Pois foi o que fez Fernando Henrique Cardoso, 82 anos, ao lado de sua namorada, Patrícia Kundrát, de 35. Apesar de surpreendente, a paradinha na drogaria ao pé do morro não era a primeira experiência do casal na maior favela do país. Semanas antes, eles já haviam cruzado de carro o vasto complexo de casebres pela Estrada da Gávea, vindos da Zona Sul. Dono de um apartamento em São Conrado, Fernando Henrique passa por um processo de redescoberta da cidade onde nasceu e viveu até os 9 anos de idade. Envolvido em uma agitada rotina que inclui desde palestras internacionais até encontros políticos, ele permanece pelo menos dois fins de semana por mês aqui. Nessas ocasiões, vai a restaurantes, passeia e se exercita regularmente em caminhadas pela orla do bairro ? às vezes, arrisca um mergulho no mar bravio, seguido de um almoço num quiosque. “Aqui vivo uma verdadeira epifania”, diz. “É onde fico mais tranquilo e relaxado. Ninguém me vê de bermuda em outro lugar.”

A eleição para a cadeira 36 da ABL, na última quinta-feira, é um marco da nova fase carioca de FHC. A partir de agora, as passagens de fim de semana deverão incorporar ao menos algumas quintas-feiras, pois é nesse dia que acontecem as sessões ordinárias da ABL na sede da entidade, no Centro. Autor de 34 livros, seis deles escritos depois de deixar o governo (o último é Pensadores que Inventaram o Brasil, lançado na semana passada), o ex-presidente recorda que a decisão de concorrer não foi fácil. “Relutei em me candidatar porque não me considero um literato, temia criar constrangimento pelo cargo que ocupei e politizar a eleição”, revela. Excesso de pudor, segundo amigos. “Ele dará uma grande contribuição, pois tem um papel importante na forma de pensar e de explicar o país”, enfatiza o imortal Celso Lafer, que foi ministro em seu governo.

A conquista do fardão reforça um processo iniciado no ano passado, quando comprou o apartamento de São Conrado, um dois-quartos de pouco menos de 100 metros quadrados. O imóvel, segundo conta, foi adquirido com o dinheiro do Prêmio Kluge, uma espécie de Nobel das ciências humanas, concedido pelo Congresso americano e que rende aos ganhadores 1 milhão de dólares. Com isso, pode ficar mais tempo com a parte da família que já havia se estabelecido no Rio ? a filha caçula, Beatriz, o filho mais velho, Paulo Henrique, e quatro netos, todos moradores de São Conrado (a filha do meio, Luciana, vive em Brasília). Apesar de ter passado a maior parte de sua vida em São Paulo, Fernando Henrique ainda mantém a carioquice inata. “Fiz minha vida política e acadêmica lá e em Brasília, mas minhas raízes estão aqui. Nunca cheguei a perder o sotaque”, orgulha-se ele, que além dos filhos e netos tem na cidade uma vasta parentela de primos e sobrinhos.

Para quem passou oito anos cercado de protocolos e serviçais no Palácio da Alvorada, Fernando Henrique leva uma vida bastante trivial quando está no Rio. No apartamento de São Conrado, é ele quem atende o telefone, abre a porta às visitas e com frequência tira a mesa e até lava a louça. De empregados há apenas uma diarista que dá expediente uma vez por semana. A decoração da sala de visitas segue o estilo despojado. Com piso e paredes brancas, tem poucos móveis, entre eles um grande sofá revestido de tecido cinza, uma estante de metal com cerca de quarenta livros e duas cadeiras da designer Luciana Rodrigues, filha de seu amigo dos tempos da USP, o sociólogo e professor Leôncio Martins Rodrigues. Na varanda, uma parede foi reservada para receber uma obra do grupo Muda, conhecido por espalhar painéis de azulejos pela cidade ? um dos membros do grupo é amigo de sua neta. Ao contrário do que se possa imaginar, o imóvel não fica à beira-mar, mas próximo à Estrada Lagoa-Barra, com vista para a Pedra da Gávea e a Rocinha. “Tem tudo de que preciso”, costuma dizer.

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Os amigos também são muitos por aqui. Vários dos antigos membros dos ministérios de seus dois mandatos são radicados no Rio. Vive na cidade boa parte da equipe de arquitetos do Plano Real, que derrubou a inflação e garantiu ao país a estabilidade econômica. Recentemente, ele varou a madrugada na festa de 70 anos de Pedro Malan, seu ministro da Fazenda, e há uma semana jantou na casa de Gustavo Franco, que presidiu o Banco Central de 1997 a 1999 ? ambos ligados ao curso de economia da PUC. Outro amigo próximo é o ex-diplomata Luís Felipe Lampreia, seu ministro das Relações Exteriores, com quem costuma jantar no Antiquarius, no Leblon. Entre os interlocutores há ainda representantes da nova geração, como o apresentador Luciano Huck e o ex-jogador Ronaldo, que costuma telefonar em busca de opiniões sobre o país. Sua surpreendente defesa da descriminalização das drogas o tornou ainda mais popular entre a ala jovem. “Ele sempre teve um traço espirituoso e brincalhão até em momentos críticos, o que faz com que seja muito carismático, tanto entre os seus contemporâneos quanto entre os mais novos”, lembra Lampreia.

Mesmo distante de cargos públicos ou eletivos há uma década, FHC continua a ser uma das pessoas mais influentes do país. Presidente de honra do PSDB, é um dos articuladores da candidatura de Aécio Neves à Presidência em 2014 ? por sinal, os dois jantaram juntos em maio no Lorenzo Bistrô, restaurante discreto no Jardim Botânico. “Fernando Henrique continua um político militante, ainda que longe das obrigações e tensões do dia a dia”, avalia o senador José Sarney (PMDB-AP), também ex-presidente da República e imortal da Academia. FHC não se esquiva de opinar sobre temas do momento, a começar pelas manifestações que chacoalham o país. Para ele, o governo federal enfrenta “uma fadiga de material” e o cenário indica que a reeleição não se resolverá no primeiro turno. “As manifestações das últimas semanas são um processo social complexo e expressam um desejo claro de mudança. São como uma panela de pressão da qual começa a sair fumaça. O detonador foi a carestia do ônibus, mas elas envolvem a insatisfação com a má qualidade dos serviços, a saúde, a inflação, a corrupção”, afirma. Ele compara a onda de protestos ao Movimento de Maio de 68 na França, que começou com estudantes e se generalizou. “Aqui também não é uma ação institucional, abrange todas as classes”, completa.

Em seus passeios pela cidade, FHC circula quase sempre acompanhado da namorada. Patrícia Kundrát, ex-funcionária do Instituto Fernando Henrique, tem beleza marcante, uma combinação de estatura acima da média, olhos claros e cabelos aloirados com corte moderno na altura dos ombros. Paulistana e pós-graduada em marketing, ela atua na comissão sobre a política de drogas do Instituto Igarapé, com sede no Rio, e é a primeira namorada oficial de FHC desde a morte da ex-primeira-dama Ruth Cardoso, em 2008. “Conviver com ele é muito fácil, está sempre disposto e alegre. É pena que trabalhe tanto”, diz a namorada. Pessoas próximas costumam atribuir muito do atual interesse do ex-presidente pelo Rio a Patrícia, que é apaixonada pela cidade. Os dois foram vistos juntos pela primeira vez por aqui no Sambódromo, durante o Carnaval. Depois, estiveram na reinauguração do Maracanã, no início do mês, e vão com frequência ao cinema do Fashion Mall, onde viram no domingo (16) O Grande Gatsby. “É natural que a minha energia tenha se renovado. Ela é uma pessoa alegre, cheia de vitalidade”, comenta. Amante de um bom papo e uma boa mesa, Fernando Henrique tem um fraco por restaurantes, no que é acompanhado por Patrícia. Nessas ocasiões, faz justiça à fama de mão fechada e raramente escolhe na carta de vinhos rótulos que superem a faixa dos 100 reais.

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Nascido em Botafogo, ele guarda lembranças agradáveis da infância no Rio, mas revela tristeza ao falar da antiga casa da avó, na Rua Bambina ? uma construção do fim do século XVIII que, embora tombada, se encontra em ruínas. Foi ali que passou os primeiros anos de vida. Depois, mudou-se para a Rua Pompeu Loureiro, em Copacabana. Desse bairro vêm as impressões mais marcantes, que coincidem com o início da II Guerra Mundial. Recorda, por exemplo, que, em uma pacata Avenida Atlântica, as residências adotavam o blackout. Com o objetivo de impedir que os submarinos alemães identificassem a linha costeira à noite pelas luzes das janelas, cobria-se tudo com cortinas de veludo preto. Na época, ele estudava no Colégio São Paulo, em Ipanema. Antes de se mudar definitivamente para a capital paulista, morou na Tijuca. Agora, 73 anos depois, faz o caminho de volta ao se instalar em São Conrado. Isso não significa que FHC se alinhará ao contingente de aposentados que desfrutam um doce retiro no Rio. Afinal, cada palestra sua rende pelo menos 100?000 reais, e ele não tem a menor intenção de deixar de ministrá-las. “Minha agenda continua intensa, mas hoje tenho mais tempo para mim”, diz. É justamente esse tempo que ele pretende desfrutar em sua cidade natal a partir de agora.

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