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Coordenador da Lava-Jato faz palestra com ar de stand-up comedy

O procurador Deltan Dellagnol participou de bate-papo descontraído com Fernando Gabeira, nesta terça (16), às vésperas de uma bomba

Por Daniela Pessoa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 Maio 2017, 18h14 - Publicado em 18 Maio 2017, 15h40

Terça-feira, 16 de maio, casa lotada e gente ocupando corredores ou qualquer espacinho disponível. Esse era o cenário na sala Fernanda Montenegro, do Teatro Leblon, onde se desenrolou uma espécie de debate para o lançamento do livro do procurador federal Deltan Dellagnol, de 37 anos, coordenador da Operação Lava-Jato. O encontro marcado para às 20h previa uma conversa informal entre Dellagnol e o jornalista Fernando Gabeira, 76. O ingresso para o evento era a compra da obra do paranaense, intitulada A luta contra a corrupção (Editora Primeira Pessoa / Sextante, R$ 39,90). Às oito em ponto, o palco foi ocupado pelos dois protagonistas e o que se assistiu ganhou ares de stand-up comedy (com a diferença que estavam ambos sentados), tamanho o volume das risadas da plateia. “Deltan às vezes é acusado de ser muito jovem. Eu não levo essas acusações a sério, porque as mesmas pessoas me acusam de ser um velho decadente”, disse Gabeira com a sua habitual calma, arrancando as primeiras gargalhadas. Tranquilo, com um leve um rubor nas bochechas, Dellagnol sorria sem parar e foi recebido com aplausos da plateia em pé. Ele era a imagem da felicidade, às vésperas da divulgação da existência das gravações dos irmãos empresários, Wesley e Joesley Batista, sobre o presidente Temer. Confira abaixo os melhores momentos do diálogo entre Dellagnol e Gabeira.

Dor de barriga

DELLAGNOL. Na Lava-Jato, é tudo muito corrido. A gente costuma comprar mantimentos no supermercado para não ter que sair para comer. Certa vez, eu passei mal. Tive problemas gástricos que me levaram ao banheiro muitas vezes. Eu não tinha tempo de ir ao médico, então fui fazer uma consulta via Whatsapp. Só que o nome do meu gastroenterologista é Paulo Roberto Costa Claro, e a gente tinha recém-feito o acordo de colaboração com o Paulo Roberto Costa. Cliquei no primeiro Paulo Roberto que apareceu e escrevi: “Dr. Paulo Roberto, estou me sentindo assim e assado. Quando vou ao banheiro, acontece isso. Me ajuda”. E veio a resposta: “Dr. Deltan, não sou médico, sou engenheiro. Sinto não poder ajudar, mas desejo sua pronta recuperação”. Gabeira, eu fico contente por não ter mandado fotos!

Blackberry

DELLAGNOL. A Lava-Jato recuperou 10 bilhões de reais num país em que a regra é recuperar zero. A operação é fruto de competência e muito trabalho, mas decorreu também de um conjunto de fatores improváveis. Os doleiros identificados nesse caso, lá na origem, trocavam mensagens através de aparelhos Blackberrys, porque entendiam que assim não poderiam ser interceptados. Mas eles mal sabiam que um agente da Polícia Federal tinha estado no Canadá, onde havia sido desenvolvido um sistema de quê? De interceptação de Blackberrys. Foi assim que chegamos ao Alberto Youssef.

GABEIRA. As circunstâncias estiveram muito contra nós no passado. No comício em Caruaru, Pernambuco, durante o movimento Diretas Já, as estrelas eram o Collor e o Lula. Os dois levantando a bandeira anticorrupção. Collor na época era o caçador de marajás, e o Lula era o homem que trazia ética para a política. Anos depois, os dois são réus da Lava-Jato. Fica bastante claro que há alguma coisa errada no sistema que construímos desde a redemocratização do país.

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PowerPoint

GABEIRA. Uma das grandes críticas que foram feitas ao seu trabalho foi a apresentação de um PowerPoint. Ali eu acho que você cometeu um erro, porque você diz que o Lula é o comandante de tudo. E agora nós ficamos sabendo que ele é apenas o chefe.

DELLAGNOL. Acho que vou chamar meu advogado e me reservar o direito de permanecer em silêncio. E hoje não tem PowerPoint.

Heróis

DELLAGNOL. Quem na plateia acha que a Lava-Jato transforma o Brasil? Infelizmente, a operação não vai mudar o país. Ela pode ser um passo nessa direção, mas é insuficiente. Tirar as maçãs podres do cesto não basta, porque as outras vão continuar apodrecendo. Não existem heróis da Lava-Jato. Eles são vocês, a sociedade. Mas o discurso do herói me preocupa, porque coloca a população como vítima da realidade, de representantes que não nos representam, do passado, da colonização portuguesa burocrática que trouxe a corrupção.

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Pizza

DELLAGNOL. O foro privilegiado desprestigia a ideia de República, de que todos devem ser iguais perante a lei. Hoje temos mais de 50 000 pessoas com foro.  Eu mesmo tenho, e não deveria ter. Precisamos mudar essa realidade, estabelecer um governo entre iguais, em que todos estão sujeitos à lei e ao juízo de primeira instância, inclusive o presidente. E precisamos transformar a Lava-Jato em regra. Hoje, 97% dos casos comprovados de corrupção acabam em pizza. Apenas três a cada 100 casos resultam em punição. Você acha que os réus vão para a prisão? Não. São punidos com prestação de serviços à comunidade e doação de cestas básicas. Isso faz com que o crime da corrupção compense. O problema do país não é o partido A ou B, é o sistema político apodrecido. Vale a pena ser corrupto no Brasil.

GABEIRA. A maioria dos casos não chega ao Supremo, não são alavancados até a mesa do STF, que dirá com uma boa pontaria precisamente à mesa do Gilmar.

História

DELLAGNOL. Os esquemas de corrupção vêm de longa data, gente. Em 1650, o padre Antônio Vieira já dizia que quem era ladrão não era o ladrão de galinha, mas os governantes que vinham aqui, segundo ele, não buscar o nosso bem, mas buscar os nossos bens. Em 1820, surgiu uma riminha carioca: “Quem rouba é ladrão, quem rouba muito é barão, mas quem rouba muito e esconde é promovido de barão a visconde”. Recentemente, apareceu uma nova expressão, a do político que “rouba, mas faz”. A quem ela se relaciona?

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PARTE DA PLATEIA. Maluf!

DELLAGNOL. Ademar de Barros. Mas o outro que vocês pensaram, até isso ele roubou.

A tática do inimigo

GABEIRA. Há quem diga que a Lava-Jato fere princípios legais. Já compararam os jovens procuradores aos tenentes. Isso inibe a operação?

DELLAGNOL. É muito comum, no Brasil, atacar o procedimento para evitar a discussão do mérito. Quando as investigações são cuidadosas e as provas são fortes, o político nega tudo alegando perseguição. O receio que a gente tem é que essa narrativa de perseguição política e abusos de autoridade acabe pegando com o tempo. Essa já era uma estratégia de Goebbels [Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista]: uma mentira repetida mil vezes começa a parecer verdade.

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GABEIRA. O que importa não são as evidências, é a narrativa…

DELLAGNOL. Vivemos a era da pós-verdade, que virou a expressão do ano 2016 no Oxford Dicionaries. Há blogs que simplesmente criam ou distorcem fatos todos os dias. São construídas narrativas, por exemplo, para dizer que as colaborações da Lava-Jato são extraídas mediante pressão. E isso viraliza na internet. Mais de 80% dos casos de colaboração, no entanto, foram feitos em casos em que não existia prisão.

GABEIRA. Escrevi hoje um artigo em que concluí o seguinte: no século passado, caiu o muro; nesse século, precisa cair a ficha.

DELLAGNOL. No Brasil, são desviados 200 bilhões de reais por ano em esquemas de corrupção. Um montante que poderia triplicar o orçamento federal na saúde ou na educação. Em dois anos e meio, o país resolveria o problema do saneamento básico. Não importa se você é de esquerda, direita, de cima ou de baixo, dá para fazer muito com esses 200 bilhões.

Itália

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DELLAGNOL. Houve uma operação parecida com a Lava-Jato, na Itália, na década de 90. Tinha até uma estatal petrolífera no centro do escândalo. Lá, o sistema político inteiro estava danificado, como o nosso. Aí, começaram a aparecer alguns discursos de supostos abusos na operação, que jamais foram comprovados. Mas, se a população começa a desconfiar do procedimento, acabou. Foi o que aconteceu na Itália. Oito anos depois, esvaziaram a Operação Mãos Limpas e chegaram até a aprovar uma lei que proibia a prisão preventiva especificamente nos casos de corrupção. Lá, a pauta anticorrupção foi substituída no legislativo pela pauta de abuso de autoridade do judiciário. Qualquer semelhança…

GABEIRA. Em último caso você pode prometer, numa campanha política, que vai prender todos os procuradores.

DELLAGNOL. Gabeira, infelizmente a Itália perdeu a janela para a transformação. Se não aproveitarmos a oportunidade que a Lava-Jato está nos oferecendo agora, vamos viver o resto de nossas vidas assistindo aos escândalos, sentados no sofá, e reclamando da vida. Somos capazes, sim, de construir um Brasil melhor, mas a hora é agora.

Projeto anti-corrupção

NELSON FREITAS, HUMORISTA, DA PLATEIA. Mas o que a gente, o povo, pode fazer? Temos que seguir o exemplo da Ucrânia, pegar os políticos e jogar na lata do lixo?

DELLAGNOL. Precisamos avançar com as reformas. Nós do Ministério Público Federal redigimos propostas anticorrupção com três eixos centrais: prevenção, punição e recuperação do dinheiro desviado. No final de 2016, as medidas foram aprovadas no Congresso quase na íntegra. Lá no plenário, no entanto, na noite seguinte à tragédia do Chapecoense, enquanto a sociedade brasileira chorava a morte daquelas pessoas, a Câmara dos Deputados deturpou completamente as propostas, desfigurou o projeto. Eu me arrastei até o trabalho e, pela primeira vez, pensei em desistir. A grande verdade é que existem causas pelas quais vale a pena lutar, independente do resultado. E o nosso país é uma delas. Não sei se vamos ganhar ou perder, mas nós precisamos prosseguir. Concordo com Gandhi quando ele disse que a força não vem das vitórias. Quando você passa por dificuldades e decide não se render, isso é força.

***

Dono da Editora Sextante, Tomás Pereira fez os últimos agradecimentos, avisou que a sessão de autógrafos iria começar e disparou: “Depois de tudo o que ouvimos aqui hoje, o esperado é que a gente organize a fila da maneira mais confortável e tranquila possível, seguindo a ordem das fileiras do teatro, ok?”. Imediatamente, uma jovem senhora cutucou a amiga: “E brasileiro lá gosta de ficar esperando em fila?”.

(Divulgação/Divulgação)
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