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Os caçadores dos sons perdidos

Pesquisadores buscam nos arquivos das gravadoras registros essenciais para a preservação da história da música popular brasileira

Por Pedro Tinoco e Rafael Teixeira
Atualizado em 5 jun 2017, 13h54 - Publicado em 7 ago 2013, 18h10

O Rio é, historicamente, a capital da música brasileira. Na Casa Edison, na Rua do Ouvidor, os primeiros discos nacionais foram gravados em 1902. Dez anos depois, a pioneira fábrica ­Odeon Talking Machine seria inaugurada na Tijuca. Desde então, a cidade tornou-se o centro da indústria fonográfica. Produtoras de bolachas de 78 rotações, LPs e CDs viveram aqui seu auge e, com a difusão do compartilhamento via internet, a derrocada. Essa história tão extensa agora passa por um novo desdobramento: a busca por registros originais, que não apenas permitam entender as circunstâncias do surgimento de cada disco, mas também ajudem a preservá-los para a posteridade da maneira exata como seus intérpretes os gravaram. A relevância dessas produções, as matrizes, veio à tona em meio a um imbróglio judicial que envolve o cantor baiano João Gilberto e sua antiga gravadora, a EMI. Ele exige da multinacional inglesa a devolução das chamadas fitas máster de seus históricos LPs Chega de Saudade, O Amor, o Sorriso e a Flor e João Gilberto, além do compacto João Gilberto Cantando as Músicas do Filme Orfeu do Carnaval, lançados entre 1959 e 1962. Argumenta o artista que, nos relançamentos em CD, que ocorreram há vinte anos, os trabalhos foram adulterados. A gravadora nega. Querelas à parte, é fato que muito do que se produziu em termos de música no país está perdido em arquivos ? e em vários casos, suspeita-se, para sempre. “A função das gravadoras é vender discos. Elas não têm a cultura da preservação histórica”, diz Jairo Severiano, 86 anos, dono de um formidável acervo de fonogramas gravados entre 1902 e 1927 e coautor, ao lado de Zuza Homem de Mello, dos dois volumes de A Canção no Tempo, trabalho que cobre a trajetória da música brasileira no século passado.

fotos reprodução
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Matrizes como as requisitadas por João Gilberto são a base para todo o processo industrial de produção e comercialização de música. Não raro, guardam riquezas desconhecidas de quem ouve apenas o produto final. São conversas entre os intérpretes ou composições inteiras descartadas pelo produtor, mas nem por isso menos relevantes. Quando elas se perdem, tudo isso desaparece. “Não encontrar a máster é algo que nos acontece com alguma frequência”, lamenta o músico e pesquisador Charles Gavin. Em notável trabalho de garimpo por empresas como EMI, Warner e Som Livre, o ex-baterista dos Titãs e apresentador do programa O Som do Vinil, no Canal Brasil, dedicado a álbuns nacionais históricos, produziu, desde 1999, a reedição em CD de mais de 400 títulos. Em meio a essa tarefa olímpica de resgate, Gavin e seus colegas compilaram uma lista vergonhosa. Constataram que não existem mais, por exemplo, as matrizes dos três primeiros discos do cantor Ney Matogrosso, lançados pelo selo Continental entre 1975 e 1977, nem do álbum de estreia do grupo A Cor do Som, de 1977, produzido pela gravadora Warner. O elenco de estrelas sem máster (veja o quadro na pág. 31) inclui, entre muitos outros, Eumir Deodato (o LP Ideias, de 1964), Frenéticas (Babando Lamartine, de 1980), Marlene (Te Pego pela Palavra, de 1974) e Elis Regina (Elis, Essa Mulher, de 1979). “Isso é um reflexo da forma como o nosso país cuida de seu patrimônio cultural”, afirma Mú Carvalho, tecladista da Cor do Som.

Quando uma matriz é perdida, os responsáveis por um relançamento costumam apelar para uma cópia ? geralmente em vinil. Essa é a prática adotada, a contragosto, por Rodrigo Faour. O jornalista e colecionador carioca já preparou mais de 500 CDs, entre reedições e compilações. “O problema é que o vinil às vezes é mal prensado e costuma trazer aquele chiado característico. Se não for uma cópia de excelente qualidade, o relançamento vai ser um desperdício”, explica. Certa vez, na reedição de um 78 rotações da cantora Ademilde Fonseca (1921-2012), ele recorreu a três discos diferentes, de três colecionadores, para aproveitar as partes em bom estado de cada um e recuperar a canção Dono de Ninguém. Faour faz coro com os colegas: “O Brasil não valoriza a preservação. Aqui, se um prédio está velho, é só derrubar e construir outro no lugar”. Na época dos discos de 78 rotações, que antecederam o LP ? no Brasil, foram produzidos até meados dos anos 60, com uma música de cada lado ?, o estrago só não foi maior por causa da atuação de um punhado de abnegados, como o próprio Jairo Severiano, além do historiador José Ramos Tinhorão e do colecionador Humberto Franceschi. “Os grandes colecionadores de discos de 78 rotações salvaram as gravadoras em várias ocasiões. Eles têm obras antigas que as próprias companhias já não guardavam mais”, conta o jornalista Sérgio Cabral, autor de várias biografias de estrelas da MPB, entre elas Tom Jobim e Nara Leão. “As matrizes dessas gravações tinham prata e era comum que fossem vendidas como descarte, apenas para a reutilização da matéria-prima”, lembra Bia Paes Leme, diretora da reserva técnica musical do Instituto Moreira Salles. Ela e uma equipe enxuta cuidam de preciosidades como o acervo pessoal de Pixinguinha, além das ricas coleções de discos de Tinhorão e Franceschi. Pensando no futuro, investem em duas frentes: o resgate de partituras ? dez inéditas de Pixinguinha foram publicadas em livro no ano passado ? e a disponibilização on-line de documentos e gravações. O site do IMS oferece hoje 20?000 fonogramas ao alcance de uns cliques. No mesmo caminho, o Museu da Imagem e do Som, guardião de 80?000 discos, avança para finalizar a digitalização de seu acervo até a inauguração da nova sede, em Copacabana, prevista para o fim de 2014.

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Antes da internet era a poei­ra. Advogado e louco por música, Marcelo Fróes já peregrinava pelos arquivos das gravadoras Sony, Warner, Universal e EMI, além de selos menores, no início dos anos 90. Levantou material inédito, depois editado, de estrelas do porte de Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Nara Leão e Erasmo Carlos. Em uma das visitas à antiga Polygram, ele achou em um canto, sem identificação, a fita de Tecnicolor, clássico LP da banda Os Mutantes gravado em 1970 ? o disco virou CD em 2000 (veja outros casos de tesouros descobertos na pág. 32). Desde 2008, Fróes continua seu trabalho à frente de um selo próprio, o Discobertas. Hoje, as caixas de fitas que ele revirava estão guardadas em galpões de segurança máxima. A preocupação com a preservação dos arquivos de áudio, aliada à crise no setor, levou à terceirização. Especializada nesse tipo de armazenamento, presente em 35 países, a Iron Mountain abriga, no bairro de Cordovil, cerca de 150?000 itens. Três grandes, Sony, Universal e EMI Music, guardam ali suas fitas máster ? a Warner usa outra companhia, a Recall, em São Paulo. Tais empresas tomam cuidados básicos, como acondicionamento em espaço adequado e prevenção contra incêndios. No entanto, nem sempre isso basta. “Esse tipo de material é muito delicado, as fitas devem ser rebobinadas e ouvidas periodicamente. Além disso, é preciso verificar se não estão soltando uma goma que aparece no processo de envelhecimento e as danifica”, alerta Oswaldo Malagutti, especialista em áudio que vem trabalhando na manutenção e recuperação das fitas máster de Roberto Carlos. “A Iron Mountain oferece um pacote completo de manutenção, mas nem todas as gravadoras estão dispostas a arcar com esse custo”, diz Luiz Alves, presidente da empresa no Brasil.

fernando lemos
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O custo, nesse caso, deveria ser considerado um investimento. “Daqui a trinta anos serão as reedições da discografia de grandes artistas que vão render dinheiro”, afirma Charles Gavin. Em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, sobram exemplos de como a ressurreição de discos clássicos se tornou uma mina de ouro para as gravadoras. Dos Beatles a Miles Davis, de Michael Jackson a Pink Floyd, inúmeros artistas tiveram seus discos reunidos em caixas especiais ou ganharam relançamentos de álbuns comemorativos ? muitas vezes com preciosas sobras de gravações que não entraram na obra original, tiradas de uma máster bem guardada. Pelo menos duas estrelas da MPB foram beneficiadas pelo zelo estrangeiro. Para celebrar os trinta anos do lançamento de Elis & Tom, gravado na Califórnia em 1974, o disco ganhou, a partir da matriz, edição remixada pelo músico César Camargo Mariano, acrescida de saborosas conversas entre a cantora e o compositor no estúdio, além de duas faixas-bônus: Bonita e uma segunda versão para Fotografia. Por aqui, isso é mais difícil. “De fato, já houve sumiço de máster, mas o esquema bagunçado favorecia. Qualquer um podia pegar uma fita e, eventualmente, não devolver. Hoje procuramos manter um controle”, reconhece Sérgio Affonso Fernandes, presidente da Warner Music Brasil, o único representante das grandes companhias procuradas a admitir o problema. Já é um começo.

Renato de Aguiar
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