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A Urca desvendada

Usuários do bondinho conseguem ver lá de cima os detalhes de um dos bairros mais charmosos da cidade

Por Lula Branco Martins e Paulo Vasconcellos
Atualizado em 5 jun 2017, 14h19 - Publicado em 31 out 2012, 20h47

A Urca é o sonho de consumo de boa parte dos cariocas. Ocupando pouco mais de 230 hectares, algo em torno de dez estádios do Maracanã, tem apenas 7 000 habitantes, de acordo com o Censo de 2010. Está-se falando do único bairro da cidade que não possui favela alguma. Seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) chega a 0,95 e se revela o mais alto do Rio. É esse lugar que o usuário do bondinho do Pão de Açúcar vislumbra, em primeiro plano, quando olha para baixo. Com a luneta instalada no topo da montanha, dá para ver seus cantos e recantos, ou, como diria Roberto Carlos, “detalhes tão pequenos” de uma espécie de paraíso urbano, protegido do caos diário de uma grande metrópole. Aliás, a rua do cantor é uma das que podem ser observadas, mesmo a olho nu, lá de cima.

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[—FI—]

Na Zona Sul, a dez minutos de automóvel do Centro financeiro e nervoso da segunda maior capital do país, a Urca consegue guardar miquinhos que pulam das árvores para os fios da rede elétrica em plena luz do dia. Seus moradores ? muitos deles aposentados em busca de paz na terceira idade, mas também artistas em plena atividade, como Lenine e Zélia Duncan ? compram fiado na padaria e sabem de cabeça o nome do jornaleiro e do moço do açougue. “Isto aqui é uma ilha de tranquilidade”, diz o pescador Sylvio Ricardo Rocha, 55 anos, que foi parceiro de vôlei do folclórico juiz de futebol Mário Vianna na areia da Praia da Urca. O engenheiro Carlos Henrique Siqueira, paraibano de 64 anos que mora no bairro desde a década de 70 e chegou a pegar o bonde antigo, recorda um de seus principais passatempos por ali: “Acompanhei da murada da Rua João Luís Alves a Ponte-Rio Niterói sendo erguida aos poucos, ano após ano”. E se emociona ao lembrar-se da terra natal. “A Urca me remete à infância em João Pessoa, quando tudo era pequeno”, diz.

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Este bairro, ele próprio, é uma obra de engenharia, com transversais e paralelas próximas da perfeição matemática. Em 1565, os portugueses liderados por Estácio de Sá se estabeleceram na Praia de Fora, entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, na tentativa de expulsar os invasores franceses da baía. Para facilitar o caminho das tropas, foram abertas as primeiras ruas da cidade, entre elas a famosa São Sebastião. Ali, séculos depois, moraria Carmen Miranda, vinda do sucesso nos Estados Unidos, e Roberto Carlos instalaria seu estúdio de gravação.

Entre 1659 e 1660, vários trechos da região foram aterrados, ligando-se pequenas ilhas ao continente. Mas, até o fim do século XIX, no imaginário popular a Urca era um bairro bélico, uma espécie de fortaleza sempre alerta à movimentação de barcos nas águas próximas. Só em 1922 foi aprovado o plano de loteamento, que permitiu a ocupação da região, que até hoje mantém dezenas de prédios baixos, de três ou quatro andares no máximo, e centenas de casas. Também é daquela época o Hotel-Balneário, construído para abrigar os visitantes da exposição comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, que depois virou cassino, e, em seguida, com a proibição dos jogos de azar no país, a TV Tupi. Conhecido país afora, o Cassino da Urca logo se tornou um ponto de encontro da boemia carioca e serviu de chamariz para atrair celebridades à Urca. Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins moraram no bairro. A aristocracia também não demorou a descobrir o lugar. A socialite Lourdes Catão reinou durante décadas em sua mansão no Quadrado ? uma ponta do bairro com casarões que leva esse nome por causa do atracadouro de traineiras e barcos, que tem essa forma geométrica.

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Hoje, além de casas, edifícios e estabelecimentos comerciais, o bairro abriga a Escola de Guerra Naval (EGN), o Instituto Militar de Engenharia (IME), a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), o Instituto Benjamin Constant, os câmpus da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na Fortaleza de São João ficam a Escola Superior de Guerra (ESG) e o Centro de Capacitação Física do Exército.

Tantas fardas e fortes, ainda assim, não garantem uma blindagem permanente. Em fevereiro de 2010, a ex-modelo Pia Nascimento, de 66 anos, foi encontrada morta a facadas em sua casa com vista para a praia. Em julho passado, assaltantes invadiram uma residência na Avenida Pasteur e mantiveram nove pessoas reféns durante duas horas, antes de fugir com computadores, joias, TVs, celulares e dinheiro. A audácia dos bandidos parece não ligar para a guarita instalada no ponto que se considera informalmente a marca única de entrada e saída do bairro, exatamente a esquina da Rua Marechal Cantuária com a Avenida Portugal.

Também passa certa tensão a quantidade de cartazes e faixas pelas janelas demonstrando a insatisfação dos moradores com a iminente chegada do Instituto Europeu de Design, justamente no edifício do cassino ? o que geraria mais movimentação do que os habitantes da Urca desejam. São galhardetes nos quais se leem “Aqui não cabe IED” e outras frases de revolta. O prédio já tem afixada uma placa da renomada escola italiana, mas segue lenta na Justiça a batalha de liminares. Está fechado há décadas, e seu estado de conservação é lastimável. Preso à porta de entrada, um aviso da prefeitura informa sobre focos de mosquito nas obras paradas ? o documento, de 2011, tem a assinatura dos fiscais do governo e de responsáveis pelo IED. Permanece por lá, notificando a ninguém que algo deve ser providenciado.

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Em certo sentido, a vida anda mesmo devagar na Urca. Há poucas intervenções municipais no bairro e não se veem grandes obras sendo tocadas, apenas um ou outro prédio, que, respeitando o gabarito, toma o lugar de velhas casas. Mesmo a reforma no edifício de Roberto Carlos, na Avenida Portugal, segue a passos lentos, com a rede de proteção dos operários atrapalhando a vista do músico, quando ele chega à varanda. Uma novidade solitária e silenciosa veio alguns meses atrás, com a instalação de dois pontos de aluguel de bicicletas ? as ruas, quase sem carros nem engarrafamentos, são ótimas para pedalar. Entre prós e contras, o saldo do “bairro do bondinho” se mostra bem positivo. O compositor Lenine, que há alguns anos trocou o Leblon pela Urca, costuma resumir assim o sentimento local: “Aqui, a gente tem conta no mercado. A Urca é uma cidade do interior a 20 metros do Rio”. Que continue assim.

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